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Beatriz Moniz, Aluna do 3ºano da Licenciatura
"A Assembleia da República aprovou, em votação final global, a despenalização da morte medicamente assistida. (…) A lei prevê, nomeadamente, que só podem pedir a morte medicamente assistida, através de um médico, pessoas maiores de 18 anos, sem problemas ou doenças mentais, em situação de sofrimento e com doença incurável." Gomes, João Francisco 2021 “Parlamento aprova texto final da lei que despenaliza a eutanásia. Texto segue agora para Marcelo Rebelo de Sousa” in Observador - Saúde, 29 de janeiro.
Neste momento, em Portugal há 12 179 mil óbitos por COVID-19, 12 179 mil seres humanos como eu e tu. A Morte é uma presença sombria que muitos de nós carregamos no olhar. Familiares, colegas, amigos, amigos de amigos, todos nós conhecemos pelo menos alguém que não resistiu a este vírus igualitário. É uma guerra mundial onde de um lado estão os seres humanos e do outro um vírus. Então porquê a discussão e a aprovação da eutanásia nestes tempos já tão povoados pela Morte? Ou melhor, a Morte medicamente assistida. À superfície parece insensível, até cruel. A verdade é que não podia ser o melhor momento para discutir a eutanásia.
Há três anos atrás, a maior parte de nós não tinha o conceito de Morte tão presente nas nossas vidas como agora, Morte esta que não é só a dos demais como também a da nossa família. Discutir a Morte medicamente assistida há três anos atrás teria sido um processo mais fácil, um processo de consciência leve. Algo mais frio, mais ligado a princípios, ideologias, até factos. Os sentimentos, a dor de toda uma sociedade seria esquecida durante a votação da Morte medicamente assistida. É, por isso, que digo que este momento é o ideal. Permite uma problematização mais justa, mais ponderada e mais consciente. Houve uma aprendizagem do peso de uma Morte, das suas consequências, da dor que deixa. O facto de que um simples vírus ter o poder para terminar involuntariamente a vida de um de nós, faz questionar sobre que competência têm os nossos representantes para decidir sobre direitos inatos ao ser humano. Sou eu, e apenas eu, que tenho jurisdição para dar um passo em frente, levantar o meu braço, abrir a minha boca. Sou eu, e apenas eu, que sinto o conforto de um abraço querido que me é dado. Sou eu, e apenas eu, que sinto a minha dor e sofrimento. Cada um de nós tem jurisdição sobre o nosso corpo, visto que cada um de nós é que tem de viver e movimentar-se nesta sociedade e mundo com o corpo em que nasceu. Como é que um completo estranho poderia alguma vez impedir-me de exercer a minha jurisdição? Como é que um estranho se acha no direito de decidir sobre o meu direito baseando-se nos seus credos religiosos? Um terceiro que nunca viveu um segundo com o meu corpo? Cada um de nós tem credos onde cimenta as suas decisões, não precisamos que nos sejam forçados credos que nos são estranhos. Cada ser humano tem o direito a exercer jurisdição no seu corpo, pois o corpo começa e termina no seu próprio indivíduo.
Segundo o artigo 24º número 1 da Constituição da República Portuguesa “A vida humana é inviolável.”. Ninguém tem o direito a interromper a vida de outra pessoa, e assim seria numa sociedade e mundo idílicos. No entanto, nós, seres humanos, pertencemos à natureza. É verdade que, mesmo na natureza, existem leis, contudo uma vida inviolável não é uma delas. Na natureza, uma vida que termina representa prosperidade para outra vida, em alimento ou maior disponibilidade de recursos. No presente, a maior parte da sociedade humana vive muito resguardada da natureza, há uma tentativa de fuga aos processos e infortúnios que acontecem na natureza. Mas nós somos animais e não objetos. Estamos condicionados a doenças graves, algumas degenerativas e incuráveis, a vírus, bactérias, doenças causadas pelo nosso próprio corpo e mente. Há sim uma violação da saúde e vida dos seres humanos. Não será a interrupção da nossa própria vida também um processo natural? Mais natural que viver dependente de químicos e máquinas? O número 2 do artigo 25º da Constituição da República Portuguesa assegura o Direito à integridade pessoal, “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.”. Há pessoas que vivem em constante sofrimento, uma tortura continuada causada pelo seu próprio corpo. Não será a morte medicamente assistida um instrumento de proteção e garantia deste direito constitucional?
A morte medicamente assistida é uma situação pesarosa e triste para a sociedade, disso não há dúvida. Não é um instrumento que deve ser felicitado e usado politicamente. O que está em causa não é o direito de uma sociedade, mas sim um direito individual. A despenalização da eutanásia tem o objetivo de oferecer alívio, uma hipótese ao ser humano integrante de uma sociedade de exercer a sua liberdade individual por uma última vez. A legalização da eutanásia é muito importante para a dignidade do indivíduo. Ao reconhecer a sua legitimidade, a lei contribui assim para a destruição de preconceitos e tabus. Não se trata tanto de uma questão de imoralidade, mas sim de liberdade individual. A moralidade da morte medicamente assistida é algo que apenas diz respeito aos indivíduos, que pelas circunstâncias infelizes em que se encontram, vem-se cara a cara com a possibilidade de optarem por este caminho final.
A verdade é que nós não sabemos como e quando iremos morrer. No entanto, penso que falo pela coletividade dos seres humanos quando digo que todos desejamos deixar esta vida em paz e contentamento. Na minha opinião, em situação de sofrimento e doença incurável nada seria mais dignificante e justo que ter a opção de decidir ter uma morte medicamente assistida. Se discordas tens o direito a rejeitar essa opção se alguma vez te encontrares nessa situação infeliz. É a maravilha de possuir jurisdição sobre o teu próprio corpo, e a partir de hoje uma jurisdição reconhecida pela lei. Viva à liberdade!
Edição: Rita Cavaco (Editora Executiva da ANA)
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